No sul do Brasil, homens e botos cooperam na pesca da tainha

Cada boto tem um nome dado pelos pescadores. Este é o Borrachinha, que está sinalizando para os pescadores lançarem a rede.
Cada boto tem um nome dado pelos pescadores. Este é o Borrachinha, que está sinalizando para os pescadores lançarem a rede.
Está prestes e se repetir um dos mais belos fenômenos da pesca da tainha no litoral sul do Brasil. Em Laguna (lat 28º28’57″S long 48º46’51″W), no estado de Santa Catarina, ocorre anualmente durante o inverno um evento singular: a pesca cooperativa da tainha (Mugil liza) entre homens (Homo sapiens) e botos (Tursiops truncatus). Trabalhando em conjunto, pescadores e golfinhos obtém resultados que isoladamente não conseguiriam.

Como em muitas das espécies de peixes, a principal arma de defesa da tainha contra seus predadores é o comportamento de cardume. Nadando em grupos compactos e sincronizados, as tainhas oferecem dificuldade de captura aos botos.  De sua parte, sem a ajuda dos golfinhos, os pescadores artesanais tem dificuldade em localizar os cardumes para lançar suas redes com sucesso.

Não se sabe ao certo quando a cooperação entre homens e botos surgiu, mas registros de mais de 150 anos já dão conta de um comportamento inusitado: no inverno, no ápice da temporada da tainha, os botos cercam e conduzem os cardumes de tainha em direção aos pescadores que os aguardam nas margens da barra de Laguna. No momento certo, os animais emitem um sutil sinal visual  para que os pescadores lancem suas tarrafas.

Pescaores ficam alinhados e há toda uma hierarquia na hora de lançar as tarrafas.
Pescaores ficam alinhados e há toda uma hierarquia na hora de lançar as tarrafas.

Ao fazer isso, além de capturar uma boa quantidade de peixes, as redes dos pescadores quebram o cardume e provocam a fuga desordenada dos peixes que conseguiram escapar . É a oportunidade que os botos têm para pegar a sua parte e, enfim, se alimentarem com fartura.

O curioso desta história é que este comportamento vem se transmitindo por gerações, tanto de homens quanto de botos. Os pescadores desenvolveram ao longo dos anos a habilidade de entender a linguagem dos botos e passam este  conhecimento para as gerações seguintes; da mesma forma, as fêmeas dos golfinhos trazem seus filhotes desde pequenos para aprender a técnica de cercar e conduzir o cardume em direção aos humanos. Ambas as comunidades, de homens e botos, cultivam e aprimoram as habilidades de agir sincronizadamente:  um verdadeiro trabalho de equipe.

A tainha vale não apenas pela sua carne saborosa, mas principalmente pelas ovas, a botarga.
A tainha vale não apenas pela sua carne saborosa, mas principalmente pelas ovas, a botarga. (Fotos de Ronaldo Amboni)

Devido à prática contínua,  o fenômeno tende a se repetir indefinidamente, pelo menos enquanto existirem tainhas (atualmente os cardumes estão sob grande pressão devido à sobrepesca e à pesca industrial ao largo da costa), golfinhos, cuja presença em Laguna está vez mais ameaçados pela urbanização e humanos dispostos a darem continuidade à atividade da pesca artesanal.

Apesar do Tursiopis habitar todos os oceanos do mundo, à exceção dos mares polares, apenas na Mauritânia há registro de comportamento semelhante.