Série do Discovery faz apologia à rapinagem do patrimônio subaquático brasileiro

Os protagonistas da série Ilha das Cobras – Caçadores do Tesouro Perdido: rapinagem explícita (foto DNI)
No momento em que o mundo busca uma nova consciência sobre a questão da preservação do patrimônio cultural subaquático, o Discovery Channel ­– que tanto já contribuiu para a defesa do meio ambiente e do patrimônio cultural humano, em produções memoráveis ­– irá reprisar a partir deste domingo (6/3) uma série que é um desserviço à causa da preservação patrimônio arqueológico subaquático brasileiro.

Trata-se da série Ilha Das Cobras – Caçadores do Tesouro Perdido, um arremedo de documentário que consegue, ao mesmo tempo, desrespeitar toda a legislação brasileira de preservação do patrimônio arqueológico subaquático, fazer apologia da rapinagem, e, de quebra, zombar da autoridade do Estado Brasileiro.

A série de quatro episódios, exibida originalmente em novembro passado, gira em torno de um grupo de caçadores de tesouros americano que vem ao Brasil em busca do Tesouro da Trindade, uma dessas lendas que permeiam o imaginário popular em múltiplas variantes. Fruto de uma suposta pilhagem feita por portugueses na América espanhola e trazida para São Paulo, o tesouro recebeu vários nomes: Tesouro dos Maias, Tesouro da Trindade, (por que  teria sido escondido na Ilha de Trindade), ou ainda Tesouro do Sombrio (em referencia ao Saco do Sombrio, em Ilhabela, onde também se imaginou que ele pudesse ter escondido).

Munidos da hipótese de que a fortuna estaria na realidade na Ilha de Queimada Grande, ao largo do litoral sul do estado de São Paulo, conhecida pela sua superpopulação de jararacas-ilhoas, nossos bravos exploradores partem em busca do tal tesouro. Para isso organizam uma expedição que será dramatizada ao longo dos quatro episódios, que é um desrespeito às leis do pais e às mais elementares práticas de preservação do patrimônio cultural subaquático.

Ao longo da série, os bravos aventureiros irão mergulhar em Queimada Grande  em busca de evidências do tesouro. Num dos mergulhos encontram uma enorme âncora de fortuna de um suposto galeão naufragado na ilha e, sem comunicar o achado a ninguém, dão início à uma dragagem completamente destruidora do sítio, em busca de objetos que e permitam a identificação do navio; encontram algumas moedas, que são, obviamente, surripiadas e levadas a bordo.   

O mais constrangedor, contudo, é uma passagem em que eles burlam uma patrulha da Marinha.

Atraídos pelo fato pouco usual de ver uma embarcação ancorada na Queimada Grande, a patrulha – aqueles infláveis cinzas que todos nós estamos acostumados a ver no mar – aproxima-se do barco para averiguação. Ao notar a aproximação da patrulha, os bravos exploradores recolhem a draga às pressas, guardam todos os equipamentos e se escondem no interior do barco – exceto o comandante, único a ficar no convés.

Ao ser abordado, o comandante diz que está tudo em ordem, que se trata de um barco de pesquisa científica e que tem as autorizações necessárias para estar ali – o que eles mesmo admitem depois que não é verdade. Para grande alívio e comemoração de todos, a patrulha desiste subir a bordo e fiscalizar a embarcação, que certamente seria apreendida caso tivesse sido inspecionada e constatada a prospecção clandestina de naufrágio. Isso tudo filmado como se fosse uma grande façanha (espero que sem o conhecimento e colaboração da Marinha).

A legislação brasileira que rege o patrimônio subaquático – uma das mais permissivas do mundo, por que, na contramão da Convenção da UNESCO para o assunto, admite a pesquisa e resgate de naufrágios por particulares e o pagamento de uma recompensa de até 40% do valor dos bens resgatados – proíbe tudo isso.

Para a pesquisa e exploração de um naufrágio – que é patrimônio da União, ou seja, de todos nós – é obrigatória  a apresentação de um projeto e a obtenção de autorização da Marinha, que acompanha toda a operação, em conjunto com o Ministério da Cultura. São exigidos laudos e relatórios periódicos e toda descoberta deve ser comunicada; a retirada de qualquer objeto do fundo do mar sem autorização é crime, e ela deve ser precedida da avaliação arqueológica e documentação do sitio. A propriedade de qualquer bem resgatado é da União, que pagará a recompensa previamente ajustada no projeto de pesquisa aprovado.

Pode-se alegar que a série é mais ficção do que documentário, até por que nela tudo é fake como uma nota de três reais: a história, a expedição, seus resultados.  Até mesmo a especialista da equipe, Mehgan Heaney-Grier, é uma atriz e modelo com boa experiência em mergulho e varias participações em séries sobre natureza, mas em cujo currículo não consta sombra de arqueologia marinha. E isso só faz piorar as coisas.

Ao se apresentar como um documentário, a série embaralha ficção e realidade, de forma que é impossível distinguir o que é o que. E mostra um Brasil casa-da-mãe-joana, onde a prática da rapinagem clandestina do patrimônio cultural subaquático é possível, nas barbas das autoridades, e com direito a exibição em horário nobre.

No final – surpresa! – como o tesouro não é encontrado, eles nos prometem mais.

A ilha de Queimada Grande, no litoral paulista, cenário da série (foto DNI)

Para quem tiver curiosidade, a série será reprisada hoje, 6/3, no Discovery Channel e já está também disponível na íntegra no YouTube.