Jacaré, Jerônimo, Tatá e Mané Preto… sobre Orson Welles, jangadas e jangadeiros

A tripulação da jangada São Pedro: Mestre Manoel Olimpio de Meira, o Jacaré, Mestre Jerônimo André de Souza, Raimundo Correia Lima, o Tatá, e Manoel Pereira da Silva, o Mané Preto
Nove horas do dia 14 de setembro de 1941. Quatro jangadeiros – Jacaré, Jerônimo, Tatá e Mané Preto – partem da Praia do Peixe, em Fortaleza, para realizar uma dos maiores feitos da náutica brasileira: navegar em uma jangada até o Rio de Janeiro, então Capital Federal, para pedir ao Presidente Getúlio Vargas direitos sociais para os 35 mil jangadeiros do Ceará. 

A bordo da jangada São Pedro, não levavam consigo nada que não fosse o próprio conhecimento  – nenhum instrumento de navegação, nenhuma bússola ou carta náutica. Eram apenas quatro homens e uma jangada.

Como numa novela, o país acompanhou pelas rádios e jornais todo o desenrolar da aventura dos jangadeiros. Pouco mais de dois meses e 1650 milhas náuticas depois, navegando predominantemente com ventos e correntes contrárias, chegaram triunfantes à Baía de Guanabara, onde a população se aglomerava para recebê-los.

Getúlio não poderia deixar de fazer o mesmo, dada a popularidade alcançada pelos jangadeiros. Já o almejado direito à aposentadoria só viria 30 anos depois. 

Na rota da São Pedro, contudo, cruzou-se uma outra: a do cineasta Orson Welles, um dos maiores nomes do cinema mundial, cujo centenário foi comemorado este mês. Hollywood havia encomendado a Welles um documentário sobre o Brasil, como parte do esforço norte-americano de atrair Getúlio à esfera aliada na Segunda Guerra.

Welles havia lido uma reportagem a respeito da travessia dos jangadeiros na revista Time e se encantou com o assunto, que virou um dos episódios do seu célebre e inacabado documentário “É Tudo Verdade”.

Sua vinda para o Brasil, a temporada no Ceará, o temperamento expansivo e despojado do “galegão” foram marcantes e resultaram num dos mais belos registros visuais do cotidiano dos jangadeiros do nordeste: o episódio “Four Men on a Raft”, uma montagem post-mortem das cenas filmadas por Welles, disponível no YouTube, um filme que vale a pena assistir.  São 46 minutos de pura poesia visual.

O filme inacabado de Welles conferiu notoriedade e repercussão à travessia da São Pedro e à causa dos jangadeiros, mas cobrou um alto preço. Nas refilmagens da chegada ao Rio de Janeiro, em maio de 1942, um acidente com a jangada derruba os homens ao mar.  Apesar de exímio nadador, Jacaré desaparece nas águas revoltas da Guanabara. Seu corpo jamais foi encontrado. 

Cena de “Four Men on a Raft”, de Orson Welles : pura poesia visual

Mais jangadas e jangadeiros 

A travessia de 1941, certamente a mais célebre, não foi a única e sequer a primeira ou a mais longa. Entre 1922 e 1993 foram ao menos nove travessias de jangadeiros, a maioria delas partindo de Fortaleza, com destinos que incluem Rio de Janeiro, Ilhabela, Santos, Porto Alegre e até mesmo Buenos Aires.

Na sua maioria, elas tinha o objetivo de chamar a atenção para as questões sociais que envolvem o jangadeiro nordestino. Outras foram feitas para comemorar o Centenário da Independência (a primeira delas, em 1922) e até mesmo homenagear João Goulart, vice-presidente de JK em 1958 e visto como herdeiro político de Getúlio. A jangada, que partiu de Fortaleza em 15 de novembro de 1958 e  chegou Buenos Aires em 21 de abril de 1959, chamava-se Maria Teresa Goulart, a mulher de Jango. 

A memória destes jangadeiros não pode ser esquecida. Com suas jangadas, eles representam melhor que ninguém um traço essencial do brasileiro: a criatividade e a capacidade técnica de fazer tanto com tão pouco.

Nós admiramos e celebramos, não sem razão, Amyr Klink, Beto Pandiani ou, mais remotamente, travessias como a de Thor Heyerdahl do Perú à Polinésia. Precisamos colocar nos nossos Jacarés, Jerônimos, Tatás e Manés Pretos no mesmo patamar. Mesmo sem a ajuda de Orson Welles.

Para conhecer melhor a história da travessia de 1941, vai ai o link da excelente tese de pós-graduação da historiadora Berenice Abreu, “O Raid da Jangada São Pedro: Pescadores, Estado Novo e a Luta Por Direitos” : http://bit.ly/1KFcHch 

O link para “Four Men on a Raft” é http://bit.ly/1PVjen1. Abaixo, comecei a consolidar uma relação das travessias de altura feitas com jangadas. Os dados não são muito confiáveis. Quem puder colaborar com informações seguras, agradeço e compartilho

Travessias de Jangada

1922 ­– Fortaleza ao Rio de Janeiro
Comemoração do Centenário da Independência
Jangadas Ypiranga e Justiniano de Serpa 

1. Mestre J. Bernardino de Paula
2. Francisco Pereira da Silva
3. Francisco Silva da Costa
4. Manoel F. de Andrade
5. Francisco C. da Costa
6. Possidônio F. Barbosa
7. Luis R. da Costa
8. Antonio F. Barbosa 
1928 – Fortaleza ao Rio de Janeiro
Comemoração da Independência 
1. Mestre Bernardino Fernando do Nascimento
2. José Isidoro dos Santos 

1941 – Fortaleza ao Rio de Janeiro
Reivindicar direitos sociais

Jangada São Pedro

1. Mestre Jerônimo André de Souza
2. Mestre Manoel Olímpio de Meira (Jacaré)
3. Raimundo Correia Lima (Tatá)
4. Manoel Pereira da Silva (Mané Preto) 

1951 – Fortaleza a Porto Alegre
Encontrar o Getúlio e Pedir o cumprimento das promessas feitas 10 anos antes
Jangada N.S. Assunção 
1. Mestre Jerônimo Andre de Souza
2. Raimundo Correia Lima (Tatá)
3. Manuel Pereira da Silva (Mané Preto)

4. Manuel Lopes Martins
5. Manuel Batista Pereira 

1958 – Fortaleza a Buenos Aires
Homenagear o vice-presidente Jango, amigo de Getúlio
Jangada Maria Teresa Goulart
1. Mestre Jerônimo Andre de Souza
2. José de Lima
3. Samuel Isidro
4. Luis Carlos de Souza, Mestre Garoupa 

1967 – Fortaleza a Santos
1. Luis Carlos de Souza, Mestre Garoupa
2. José de Lima
3. João Rodrigues da Costa
4. Manoel Bezerra de Lima
5. Manoel Antonio de Lima 

1968 – Maceió ao Rio de Janeiro 
1. Mestre João Batista Leitão

2. Nino
3. Hélio Marcolino
4. Pedro Ernesto 

1972 – Fortaleza a  Ilhabela
Reivindicar direitos sociais ao Presidente Emílio Médici
Jangada Mestre Limaverde 
1. Mestre José Eremilson Severiano da Silva 
2. José Maria da Silva, o Zé Surrão
3. Aristófanes Bilac de Carvalho
4. Edmilson Sales Silva
5. Benedito Lopes de Souza 

1993 – Fortaleza ao Rio de Janeiro
Protestar contra condições do litoral cearense
Jangada S.O.S. Sobrevivência 
1. Mestre Mamede Dantas Lima
2. Francisco Abílio
3. Francisco Valente da Silva
4. Edilson Fernandes